domingo, 5 de abril de 2009

Contos Tradicionais do Povo Português, recolha de Teófilo Braga

Editados pela primeira vez em 1883, Contos Tradicionais do Povo Português, dois volumes, são uma recolha de textos narrativos deveras importante para o estudo da literatura popular portuguesa, estabelecendo, em paralelo, um diálogo constante com outros domínios, como a etnografia, a antropologia e a psicologia.
A edição hoje disponibilizada pelas Publicações Dom Quixote segue a segunda edição da recolha, publicada em 1914 e 1915, cujo corpus textual é praticamente o dobro do que consta na edição de 1883.
No que diz respeito à recolha dos contos propriamente dita, o volume I apresenta uma primeira parte intitulada “Contos de Fadas e Casos da Tradição Popular”, a qual se divide em duas secções. Da Secção I fazem parte 57 narrativas, sob o título de «Contos Míticos da Aurora, do Sol e da Noite, sendo que a Secção II, designada de «Casos e Facécias da Tradição Popular», apresenta 92 narrativas, ou seja, mais 23 do que o publicado em 1883.
O segundo tomo, por seu turno, também se divide em duas partes: a II conta com 72 «Histórias e Exemplos de Tema Tradicional e Forma Literária» e a III com 98 «Lendas, Patranhas e Fábulas». O conjunto das narrativas publicadas por Teófilo Braga perfaz um total de 406 títulos, constituindo um repertório bastante diversificado no que se refere ao género de textos: contos populares, histórias retiradas de obras literárias portuguesas, lendas e fábulas. Assim sendo, ao leitor é permitido optar por uma leitura diária de uma ou duas das narrativas tradicionais publicadas, pois tem seguramente uma para cada dia do ano.
Relativamente à recolha dos contos populares, que se confundem com a maior parte das narrativas publicadas sob a designação de “Contos de Fadas e Casos da Tradição Popular”, o autor contou a colaboração de amigos seus, os quais lhe enviaram os textos escutados da boca de familiares, criadas, avós e avôs. “Para alargarmos a colheita dos contos orais por todas as províncias, servimo-nos da influência pessoal de bons amigos, entre os quais citaremos Reis Dâmaso, para a novelística do Algarve, Dr. Ernesto do Canto e o falecido Dr. João Teixeira Soares para as ilhas dos Açores; em casa achámos bastantes tradições da antiga divisão provincial de Entre o Douro e Minho, e do contacto com os narradores populares colhemos directamente versões importantes, por onde vimos que era absurdo, senão impossível, pretender estenografar um ditado cheio de vacilações e sem nexo que prejudicam a compreensão dos temas tradicionais.” (Teófilo Braga, Nota Preliminar a Contos Tradicionais Portugueses, Volume I).
No que se refere às histórias retiradas de obras literárias portuguesas, Teófilo transcreveu excertos dos Livros de Linhagem, mais especificamente do Livro IV, o Nobiliário do Conde D. Pedro, como a célebre “Dama Pé-de-Cabra” ou “Dona Marinha”; do Horto do Esposo, obra anónima, cujo conteúdo é de fundo religioso cristão; e dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, da autoria de Gonçalo Fernandes Trancoso, narrativas igualmente ligadas à religião, como atesta o próprio título daquela obra. Foi uma forma de o leitor se aperceber da antiguidade das narrativas breves em Portugal, as quais «apresentam uma matéria ficcionada de temas folclóricos nacionais ou estrangeiros (que se funde com a intenção histórica), coexistindo com traduções/adaptações de novelas de cavalaria francesa.» (Dine & Fernandes 1993: 13).
Na terceira parte da recolha, onde se incluem as lendas e as patranhas, Teófilo publica, igualmente, 76 fábulas de Esopo, vertidas do grego por Manuel Mendes da Vidigueira, e outras 11 da autoria do referido tradutor.
A enriquecer ainda mais a grandeza da recolha, Teófilo Braga apresentou anotações a quase todas as narrativas. Anotou versões e variantes populares e/ou literárias dos textos que recolheu, deu conta de aspectos de ordem literária, etnográfica, antropológica, confirmando-se, assim, os epítetos que lhe atribuíram os seus contemporâneos, em Portugal e no estrangeiro: meticuloso investigador das tradições do povo e grande homem das letras portuguesas. Além das anotações, o autor também publicou dois importantes ensaios que integraram a recolha Contos Tradicionais do Povo Português: um sobre Novelística Popular e o outro sobre Literatura dos Contos Populares em Portugal.
Esta recolha de Teófilo, conjuntamente com um número significativo de obras que constituem a «Biblioteca das Tradições Portuguesas», valeu-lhe a seguinte homenagem, na Frankfurter Zeitung, de 7 de Outubro de 1910, precisamente dois dias após a Implantação da nossa República: «Teófilo Braga, o presidente provisional da República Portuguesa há pouco fundada, assumiu uma situação absolutamente especial na civilização, na poesia e na ciência do seu país. O que ele fez pelo seu povo é nada mais nem nada menos do que a ressurreição do seu passado literário, a reanimação de todas as tendências nacionais e patrióticas como elas sobressaem da lenda e da moral, da poesia e das tradições de Portugal. Poder-se-ia comparar a sua acção com a de Jacob Grimm, que fez outro tanto na investigação do nosso passado alemão como ele se encontra no folclore popular e na literatura.»
Efectivamente, mais do que nos sentirmos orgulhosos por tamanho preito, temos é de valorizar todo o trabalho que o ilustre açoriano fez em relação às «coisas populares e folclóricas» que, na altura, século XIX, não se pretendiam perdidas, nem esquecidas, e que hoje, século XXI, se querem vivas e transmitidas, como sejam os contos populares da tradição oral, de geração em geração.
Rui Faria, Doutorando em Literatura Portuguesa da FLUP.


Recensão publicada no Jornal «Açoriano Oriental», dia 29 de Março de 2009


Rubrica PENSAR (EM) PORTUGUÊS